Este blog, UM ESTÁTUA PA NHÔ ROQUE, destina-se a recordar Dr Gonçalves e à partilha de informações, ideias e sugestões acerca da edificação da estátua do Dr António Aurélio Gonçalves na Pracinha "nhô Roque".

sexta-feira, 26 de junho de 2015

UM OLHAR DO DR MORAIS...

Um pequeno texto sobre António Aurélio Gonçalves do livro Memórias e outros textos" de João Morais, pág. 159.

"NOTAS SOLTAS
1 de Outubro de 1984

António Aurélio Gonçalves

Foi ontem a enterrar aquele que em vida se chamou António Aurélio da Silva Gonçalves, professor do Liceu e um dos mais ilustres homens de Letras de Cabo Verde desde sempre. Conheci-o em Lisboa em Setembro de 1936, depois de ter terminado em Coimbra a minha licenciatura em Medicina e Cirurgia. Ia frequentar o Instituto de Medicina Tropical, que constituía habilitação indispensável para o exercício da clínica nas Colónias portuguesas, Cabo Verde inclusive. António Gonçalves estava a terminar o curso de Filosofia e História, curso que também fazia o Pelópidas, então meu companheiro de pensão e pessoa amiga que me acompanhava sempre nos passeios. Um dia encontrámo-nos com o Gonçalves, que já conhecia de tradição e principalmente através dum artigo de jornal assinado por Guilherme Delgado, um colega cabo-verdiano que havia sido meu condiscípulo no Liceu Gil Eanes, de São Vicente. Era sempre agradável conversar com António Gonçalves e ouvi-lo na sua boa dicção, calma, com um falar quase cantante, mas em que as sílabas eram bem batidas. Por essa altura (1936) tinha sido um sucesso a conferência que fizera na Faculdade de Letras subordinada ao tema “A figura moral e cívica de Raskolnikof em ‘Crime e Castigo’, de Dostoievsky” e que mereceu entusiásticos aplausos dos professores. Foi então aconselhado a completar o estudo, como era de resto o propósito do Gonçalves, com o estudo da figura política daquela personagem de Dostoievsky, servindo depois o trabalho para a tese de licenciatura. Mas esta segunda parte não chegou a ser apresentada. Mais tarde, em São Vicente, fez uma série de palestras sobre o romance, analisando não só o romance russo como o francês, o inglês, etc., revelando um vastíssimo conhecimento da matéria, fruto de muitos anos de leitura e lucubrações. Deixa algumas obras de real valor publicadas em volumes e colaboração dispersa em várias revistas. Este homem de robusta inteligência e vasta cultura veio a encontrar a morte por atropelamento quando fazia o seu passeio na Avenida Marginal. Fui visitá-lo no Hospital algumas horas depois, quando estava a entrar em delírio e pronunciava palavras sem nexo, mas distinguia-se claramente a expressão várias vezes proferida “morte inglória”. Ainda hoje fui à Avenida Marginal visitar o local do crime, e lá, na borda do passeio, uma grande mancha de sangue coagulado, testemunhando a inconsciência dum motorista que causou esta criminosa morte inglória."